Publicado em 11/10/2025
Imagem: Arte/UOL
Mariana SanchesColunista do UOL, em Washington D.C
“Se quiser evitar guerras, você deve ter um filho da puta como secretário de
Estado.” A frase, dita ao podcast Self Centered, é do embaixador americano Richard
Grenell. No fim de 2024, ele tentava convencer o recém-eleito presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, de que era o candidato mais qualificado para
comandar o Departamento de Estado, o órgão diplomático de Washington.
Por “filho da puta”, Grenell descrevia um negociador realista e desapegado de
valores morais, pronto a apertar a mão de qualquer pessoa que pudesse oferecer
altos ganhos aos EUA por baixo ou nenhum custo. Com frequência, porém, em
2025, o xingamento passou a ser usado contra Grenell por críticos republicanos que
o veem disposto a rifar os interesses mais profundos da base eleitoral trumpista em
acordos com adversários, como o venezuelano Nicolás Maduro e, agora, o
presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
Republicano histórico e leal expoente Maga (“make America great again”, ou “faça
os EUA grandes de novo”, o movimento trumpista) desde o primeiro mandato de
Trump, Grenell perdeu o cargo de secretário de Estado para Marco Rubio, senador
republicano pela Flórida que chegou a concorrer contra Trump nas primárias
republicanas em 2016 e, atualmente, tenta se cacifar como seu sucessor, em 2028.
Alternativamente, porém, ele recebeu de Trump o título de “enviado presidencial
para missões especiais” —um cargo híbrido, sem dedicação pública exclusiva,
similar ao posto de outros enviados trumpistas, como Steve Witkoff, que
recentemente ajudou a costurar o acordo de paz entre o Hamas e Israel.
Na prática, Grenell se converteu em uma eminência parda da política internacional
do republicano, especialmente na América Latina. E foi nessa posição, em uma
série de ao menos quatro reuniões secretas com o chanceler brasileiro Mauro Vieira
e o assessor presidencial Celso Amorim, que o UOL revela agora, que Grenell
ajudou a desfazer o maior nó diplomático da história da relação entre o Brasil e os
EUA.
O estilo Ric Grenell de negociar
O governo Trump nem mesmo completava duas semanas quando Grenell ganhou
manchetes de jornais latinos e norte-americanos. Em sua primeira missão, ele
negociou com o governo venezuelano a libertação de seis americanos presos no país —e surgiu em uma foto sorridente e apertando a mão de Maduro, para aflição
da diáspora venezuelana na Flórida que apoiou Trump e se opõe a qualquer tipo de
negociação com o líder chavista.

Richard Grenell, enviado de Trump, e o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, no palácio presidencial em Caracas, em 31 de janeiro
Imagem: 31.jan.2025 – AFP/Presidência da Venezuela
Sem experiência na região (ele antes serviu na Alemanha e na Sérvia, leia mais
abaixo), Grenell não se constrange em admitir que não sabe muito sobre a área.
Mas isso não seria um problema.
Além de se cercar de assessores que conhecem o terreno, Grenell, segundo gosta
de repetir a seus interlocutores, domina o principal: a defesa do “América First”, a
prioridade aos interesses dos norte-americanos, conforme o lema de campanha
trumpista.
É nesta chave pragmática e realista que Grenell se senta à mesa com Maduro: ele
se convenceu de que, para o americano médio, mais vale ter outros compatriotas
libertos e lucro com a exploração do petróleo ali, do que defender abstratamente a
democracia no país alheio.
E, se a Venezuela dominou sua atenção nos primeiros seis meses de governo
Trump, a partir de julho, Ric, como é conhecido em Washington, começou a voltar
sua atenção ao Brasil. Com o passar das semanas de crise, resolveu entrar em
campo para destravar o diálogo entre Lula e Trump.
As conversas secretas
Sem falar uma palavra de português e sem nunca ter pisado antes no Brasil,
Grenell comandou uma reaproximação que incluiu ao menos três conversas com
autoridades brasileiras antes do abraço entre Lula e Trump, em setembro, na sede
da ONU, e mais uma antes do telefonema de ambos no último dia 6.
Os movimentos foram narrados e confirmados ao UOL, reservadamente, por
múltiplas fontes de alto nível das administrações Trump e Lula.
Agindo com a autorização do líder da Casa Branca, mas sem coordenação com
Rubio e o Departamento de Estado, no dia 22 de setembro, Grenell se encontrou
pela primeira vez pessoalmente com Amorim, em Nova York.
A reunião aconteceu longe dos olhares da imprensa brasileira, que se concentrava
diante da residência oficial do embaixador brasileiro na ONU, onde Lula e outros
auxiliares repassavam os detalhes do discurso que ele faria na manhã seguinte, e
no qual denunciava os ataques dos EUA à democracia do Brasil.
No encontro, Grenell assegurou a Amorim que Trump gostaria de cumprimentar Lula
pela primeira vez e ouviu do assessor presidencial que o brasileiro também
desejava o encontro, que de fato aconteceria por volta das 9h45 daquele dia 23,
nos bastidores da Assembleia Geral da ONU.
E, embora tenha se dito “surpreso” a posteriori, ao sair do palco da Assembleia
Geral, na manhã daquela terça-feira, Lula já sabia que Trump o esperava na sala
usada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, conforme o script repassado
por Grenell e Amorim no dia anterior.

Trump assiste ao discurso de Lula na Assembleia Geral da ONU
Imagem: Mark Garten/ONU
O time do embaixador americano comemorou, porém, quando soube que Lula
quebrou o protocolo do mero aperto de mão e ofereceu ao americano um abraço.
Já Rubio, sentado na plenária, não esboçou nem mesmo um sorriso ao ouvir o
chefe, discursando de improviso na plenária da ONU, anunciar a “ótima química”
que acabara de ter com Lula.
O secretário de Estado vinha encampando o conjunto de punições ao Brasil iniciada
no começo de julho. Entre as medidas, o governo Trump impôs um tarifaço de
50% que atingiu cerca de 60% das exportações brasileiras ao país, restringiu vistos
a dezenas de autoridades brasileiras e acionou as sanções financeiras da Lei
Global Magnitsky contra o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre
de Moraes e sua família.
Ao menos em parte, as ações foram motivadas pela campanha do deputado federal
Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e do comentarista Paulo Figueiredo por medidas de
Washington contra o Brasil que, segundo ambos, pudessem levar à aprovação de
anistia a Bolsonaro e seus aliados.
Até a véspera do encontro entre os presidentes, valia a palavra de Rubio, que
prometera que os EUA “responderiam adequadamente” ao que qualificou como
“uma caça às bruxas” a Jair Bolsonaro, em referência à condenação do expresidente por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes.
A inflexão na postura de Trump acontecia para surpresa de Rubio, que no dia
anterior ao abraço presidencial havia anunciado nova leva de restrição de vistos a
autoridades brasileiras, entre as quais o advogado-geral da União, Jorge Messias.
No dia seguinte ao abraço de Lula e Trump, na quarta, 24, Grenell se reuniu
também em Nova York com Mauro Vieira. Mais uma vez, em segredo.
Em um primeiro momento, ambos expressaram as impressões de lado a lado sobre
o positivo, ainda que breve, encontro entre os líderes. E na sequência, exploraram
as possibilidades para destravamentos das negociações entre Brasil e Estados
Unidos e oportunidades comerciais por setor —carnes, café, maquinários e
aeronaves.
A ideia era garantir que o contato amistoso levasse a uma conversa mais
substanciosa em breve, como de fato aconteceu com a chamada telefônica entre
Lula e Trump, no último dia 6.
Ainda no dia 24, Grenell disse a Vieira e a seu chefe de gabinete, Ricardo Monteiro,
que Trump estava particularmente preocupado com a questão das regulações das
big techs no Brasil —e que gostaria de ver a rede Rumble, parceira da Truth Social,
de Trump, e fora do ar desde o começo do ano, voltar a operar no país.
O auxiliar do republicano ouviu que a questão seria relativamente simples de
solucionar desde que a empresa constituísse um representante legal no Brasil,
como requer a legislação nacional. E que a rede X (ex-Twitter), do bilionário e exassessor de Trump Elon Musk, havia passado por algo semelhante e já não tinha
mais contenciosos com o STF.
Sua mensagem ao Brasil era que a relação poderia entrar em uma fase mais
pragmática do que jamais antes desde o início da segunda gestão Trump. Recado
que o próprio Trump repetiria no último dia 6, depois do telefonema a Lula. “Vamos
começar a fazer negócios com o Brasil”, disse o líder da Casa Branca, no salão
oval.
Era o desfecho para um movimento que ele havia detonado cerca de dez dias
antes, quando surpreendeu sua equipe com uma partida relâmpago dos EUA ao
Brasil, que forçou o governo brasileiro a emitir vistos ao grupo em questão de 48
horas.
Em 15 de setembro, Grenell e mais cinco pessoas desembarcaram no Rio para uma
parada de menos de 24 horas. Ali, o embaixador norte-americano conversaria pela
primeira vez com o chanceler Mauro Vieira. O encontro, único até então já tornado
público, foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo poucos dias depois do abraço
de Lula e Trump às margens da Assembleia Geral da ONU.
Esta é considerada a conversa crucial em toda a estratégia de Grenell, porque não
apenas destravou contatos bilaterais como coreografou a sequência de passos que
viria depois.
Do Rio, Grenell seguiu para Assunção, no Paraguai, onde esteve com o presidente
Santiago Peña, um aliado de direita na região, e participou da Conferência
Conservadora CPAC, o encontro mais importante para a direita trumpista.
O americano não embarcou à capital paraguaia sem antes apresentar, numa ligação
telefônica desde o Rio, suas credenciais a Amorim. O brasileiro não esteve no Rio,
mas a conversa telefônica, secreta até agora, fluiu de modo cordial e serviu para
Grenell repetir a ele a mensagem que passara a Vieira: de que Trump via uma
oportunidade de dialogar.
De ambos, Grenell ouviu a perspectiva do governo brasileiro sobre os
acontecimentos políticos de 2022 e a reafirmação de que o Brasil se via como um
aliado estratégico dos EUA com o Sul Global e os demais países dos Brics (o bloco
que inicialmente incluía, além de Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul).
A condição de Bolsonaro, em prisão domiciliar, foi brevemente mencionada na
reunião com Vieira, no dia 15. E Grenell se satisfez em ouvir de Monteiro que a
questão cabia ao Judiciário —sem interferência do Executivo.
Diplomata, gay, Maga
Diplomata de carreira, Grenell serviu como titular de diplomacia pública na missão
permanente dos Estados Unidos da ONU no começo dos anos 2000, sob a
administração de George W. Bush. Em 2012, atuou como porta-voz de política
externa do então candidato republicano Mitt Romney —que acabou derrotado.
Assumidamente gay, foi celebrado até mesmo por democratas por ser o primeiro
homossexual a ocupar cargos tão proeminentes quanto o de diretor de Inteligência
Nacional, ainda que interinamente, no primeiro mandato de Trump.
Em que pese o posicionamento contrário de Trump a movimentos identitários e suas
tensões com a comunidade LGBT, Grenell é um ativista no assunto. Em 2013, ele
atuou como amicus curiae na Suprema Corte, no caso batizado de Hollingsworth
versus Perry, que levou à legalização do casamento gay na Califórnia, onde Grenell
passou boa parte da vida.
Presença ativa nas redes sociais, em 2016, Grenell teria chegado a qualificar
Trump como “perigoso” em uma postagem no Twitter, de acordo com o site
americano Político. Com 1,8 milhão de seguidores na rede, seu histórico não pode
ser checado, porque seus (muitos) posts são deletados a cada 30 dias.
Mas, se um dia foi crítico ao atual presidente, esse momento ficou no passado. O
ideólogo Maga Steve Bannon chegou a dizer ao jornal New York Times que Grenell
representava para Trump “um par de mãos seguras para confrontar e desmontar o
establishment em Washington”.
Na primeira gestão do americano, ele já se mostrou um auxiliar tão leal quanto
polêmico. Destacado para embaixador na Alemanha, gerou desconforto no governo
alemão ao fazer comentários públicos sobre a política interna do país e foi acusado
de manter laços estreitos com a AfD, partido de extrema direita alemã.

Richard Grenell na cerimônia de credenciamento para novos embaixadores em Berlim, em 2018
Imagem: Odd Andersen – 8.mai.2018/Reuters
Grenell atuou ainda na costura de um acordo entre Sérvia e Kosovo por ordem de
Trump, cujo interesse em finalizar conflitos já era claro desde o primeiro mandato.
Na campanha de reeleição perdida por Trump, em 2020, coube a ele impulsionar
narrativas de fraudes eleitorais no estado de Nevada. As contestações não prosperaram
na Justiça.
Nos quatro anos seguintes, o embaixador seguiu na órbita trumpista, com uma firma de
consultoria internacional que com frequência atuou em parceria com Jared Kushner,
genro de Trump.
A atuação de Grenell na iniciativa privada levantou questões sobre conflito de interesse,
que ele sempre negou.

O ex-diretor interino de Inteligência dos EUA, Richard Grenell (esq.) e o senador Mike Lee cumprimentam o então candidato Donald Trump durante campanha em Prescott Valley (Arizona)
Imagem: Rebecca Noble -13.out.24/Getty Images via AFP
Na campanha de 2024, quando Trump batalhava para garantir os estados-pêndulo
centrais para sua vitória no sistema de Colégio Eleitoral que define a disputa
eleitoral nos EUA, Grenell foi crucial para virar os votos da comunidade árabe em
favor do republicano, e garantir a vitória em Michigan, estado natal do embaixador.
Com tais contribuições, era dado como certo que ele ocupasse um cargo no novo
governo Trump, embora não tenha ganhado o posto que esperava. Por outro lado,
como enviado especial, ele segue livre para manter negócios na iniciativa privada.
Grenell e Joesley
Sua atuação na Venezuela tem gerado críticas públicas de apoiadores de Rubio,
que tem optado por uma via menos diplomática: sob estratégia do Departamento de
Estado e do Departamento de Guerra, as forças armadas dos EUA já
bombardearam ao menos quatro barcos no Caribe supostamente pertencentes a
narcotraficantes venezuelanos.
Grenell diz a interlocutores que vê na estratégia radicalização ideológica —e risco
de guerra, o que não interessa aos eleitores trumpistas, críticos das chamadas
“guerras sem fim”, como ficaram conhecidos os conflitos no Iraque e no Afeganistão.
De maneira menos frontal, ele também se convenceu que o caminho da
administração Trump sobre o Brasil estava ideologicamente contaminado. Até a
condenação de Bolsonaro, quadros do governo republicano expressavam a ideia de
que o julgamento poderia ser paralisado e que Moraes poderia sofrer impeachment
graças às ações detonadas por Trump.
O desfecho do julgamento e as ações de Grenell, entre outros fatores, ajudaram a
operar uma reversão de rota da Casa Branca, inicialmente à revelia de Rubio.
Em contraste com seu estilo abrasivo nas redes sociais, os movimentos de Grenell
em suas missões diplomáticas são tão discretos que alguns membros da
administração Trump chegaram a sugerir que as notícias de sua atuação junto ao
governo brasileiro seriam “fake news”, pela ausência de rastros do negociador.
A discrição é a marca também de parte dos interlocutores de Grenell. Há algumas
semanas ele recebeu um contato dos empresários da carne e irmãos Joesley e Wesley Batista, do grupo J&F, a quem já conhece há anos. Eles relatavam que o
tarifaço americano estava custando caro aos interesses americanos e brasileiros.
Joesley não se contentou apenas em fazer a mensagem chegar a Trump via
Grenell.
Enquanto Jair Bolsonaro era julgado pelo STF, o empresário brasileiro fez um tour
pelo Congresso americano e pela Casa Branca, onde se reuniu com Donald Trump.
Ao menos duas fontes na diplomacia americana afirmam ao UOL que a reunião
causou uma forte impressão no republicano. O grupo JBS tem plantas de
processamento de proteína animal em diversos Estados do país e planos de
investimento da ordem de US$ 800 milhões nos EUA. Uma subsidiária da JBS foi a
maior doadora para a festa de posse de Trump em janeiro -com uma contribuição
de US$ 5 milhões. O empresário não faz comentários públicos sobre sua atuação.
A mesma mensagem de Joesley, Grenell —e Trump— ouviu de outros gigantes do
PIB dos dois países, incluindo big techs. Os empresários com interesses dos dois
lados se fizeram ouvir, de acordo com uma fonte diplomática americana, que vê
perspectiva de acordos comerciais em breve.
Na última segunda, quando os presidentes tiveram uma nova conversa positiva, o
trabalho de Grenell mostrou resultados concretos.
Com o sucesso da aproximação, Trump designou Rubio como o ponto de
contato para tratar de acordos formais. A escolha foi vista como natural por
diplomatas americanos e brasileiros, já que cabe a Rubio a política internacional em
termos institucionais.
Havia, porém, dúvida se Rubio, crítico histórico a Lula e até recentemente na
contramão do novo movimento, imporia alguma resistência ideológica à
reaproximação dos países. Mas o telefonema entre ele e Mauro Vieira na última
quinta dissipa ao menos por ora questionamentos dessa ordem.
Qualificado como “positivo” por ambos os lados, o diálogo entre os chefes
diplomáticos de Brasil e EUA foi encerrado com o acerto de uma reunião de
negociação entre eles, em Washington, já na próxima semana.
Diante dos sinais de normalização, e a julgar pelo histórico de sua atuação, este é
possivelmente o momento em que Grenell deverá submergir outra vez. Sem, porém,
deixar de contabilizar o novo momento entre Brasil e EUA como uma “missão
especial” cumprida.

