Atualizada em 18/05/2025 07:47
Jornalista retrata em texto e fotos os reflexos do conflito
[RESUMO] O jornalista brasileiro Yan Boechat desembarcou na Ucrânia dez dias antes de o país ser invadido pela Rússia, em fevereiro de 2022. Em visitas constantes nesses últimos três anos, testemunhou as transformações devastadoras provocadas pela guerra, da bravura inicial em tentar conter um inimigo esmagadoramente mais forte à desolação de uma derrota cada vez mais palpável. Em uma pequena cidade ucraniana quase deserta, praticamente sem homens adultos, o jornalista identificou o símbolo de um país que vai perdendo a crença de voltar a ter autonomia.
As bombas nunca caíram sobre Makiv, uma cidadezinha típica do oeste ucraniano, distante poucas dezenas de quilômetros das fronteiras com a União Europeia.
As casas de madeira seguem de pé, altivas e silenciosas. As ruas largas —largas como só os delírios do urbanismo soviético puderam sonhar— permanecem intactas, sem as cicatrizes profundas que os mísseis costumam deixar quando erram seus alvos. Os prédios públicos, embora ainda firmes, trazem em suas fachadas as marcas desbotadas da foice e do martelo, fantasmas de uma outra era.
Por isso, à primeira vista, Makiv parece ter sido poupada dessa guerra brutal que já colheu centenas de milhares de vidas aqui no coração das vastas planícies que correm do norte da França até os Montes Urais (cordilheira na Rússia). Mas essa é só a primeira impressão.
Poucos lugares na Ucrânia evidenciam de forma tão crua, tão violenta, os efeitos silenciosos da guerra contra a Rússia. Nas avenidas desertas de Makiv, nos jardins que aguardam a primavera para enfim florescer, nas estruturas caladas da antiga refinaria de açúcar, é o silêncio que grita. Tem pouca gente por aqui.
Os homens se foram. Muitos estão nas trincheiras, distantes quase a mil quilômetros de Makiv. Outros tantos estão mortos. Os mais jovens cruzaram as fronteiras para escapar da guerra. Restaram as crianças, os velhos e as mulheres, que agora cuidam dos que restaram, tentando amarrar as pontas desfeitas da vida cotidiana.
Ao longo desses últimos três anos de guerra, a cidadezinha do oeste ucraniano tornou-se uma espécie de Sármata moderna, mitológica em sua inversão: um lugar de mulheres, mas sem o ímpeto guerreiro das amazonas que habitam as lendas gregas. Aqui, o heroísmo não se manifesta em armas, mas sim em resistir, em permanecer de pé diante da ausência.
Makiv não me abandona. Habita meus pensamentos desde minha última passagem pela Ucrânia, em fevereiro deste ano. Ao longo da última década, cruzei inúmeras vezes as fronteiras daquele país, acompanhando uma guerra que começou bem antes da invasão russa de 2022 —uma guerra que, como tantas outras, não tem data clara de nascimento, apenas marcos sucessivos de dor.
Estive lá nos primeiros combates, quando milícias separatistas, apoiadas por Moscou, incendiaram o leste ucraniano, em 2014 e 2015. Vi Donetsk e Lugansk se transformarem em repúblicas de fachada, cimentadas por trincheiras imóveis, guardadas por soldados que pareciam ter sido esquecidos no tempo, como nos longos hiatos da Primeira Guerra Mundial.
Em 2022, cheguei à Ucrânia dez dias antes da invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro. Vi, de perto, a incredulidade dos ucranianos ao testemunharem tanques rasgando suas estradas, helicópteros cruzando os céus, aviões cortando as fronteiras de um país que ainda hesitava em crer no pior.
Acompanhei a bravura —feroz, desesperada, luminosa— de homens, mulheres, adolescentes e velhos unindo-se como podiam, como sabiam, para conter um inimigo esmagadoramente mais forte. Houve um instante, efêmero e grandioso, em que o país inteiro se viu como um Davi armado de coragem e esperança diante de um Golias desajeitado e cego de soberba.
Vi também a contraofensiva que não veio. Ou melhor, vi a esperança dela nascer e, aos poucos, morrer com o fracasso nas tentativas de romper as linhas de defesas russas no verão de 2023. Ao longo desses anos, acompanhei muitas batalhas. Presenciei atos de heroísmo, fé inquebrantável, dor que transbordava até do silêncio. E vi, também, a desilusão escorrendo pelas trincheiras —ora cobertas de neve, ora afogadas no barro.
Mas é Makiv que não me deixa. É ela que retorna, incansável, quando tento imaginar o futuro imediato da Ucrânia. Talvez porque, justamente por estar a centenas de quilômetros do fragor das batalhas, e ao mesmo tempo tão próxima do âmago ferido da nação, Makiv espelhe melhor que qualquer outra cidade o que é a Ucrânia hoje.
Ao menos, a Ucrânia que eu enxergo depois de tantos anos. Uma cidade pequena, esquecida pelo conflito direto, mas marcada por sua consequência mais profunda: o esvaziamento de um país —de seus corpos, de seu território, de sua esperança.
Makiv representa, em sua aparente imobilidade, a contração de um sonho coletivo. A cada dia que passa, a Ucrânia encolhe —geograficamente, demograficamente, emocionalmente. A crença de que poderia um dia assumir um papel autônomo e relevante vai se rarefazendo como neblina ao sol.
Nenhum país no mundo enfrenta hoje uma crise demográfica tão profunda quanto a Ucrânia. O problema já era grave antes da guerra atual. Por décadas, ondas sucessivas de emigração levaram embora os que sonhavam com a prosperidade do Ocidente —jovens em busca de oportunidades, famílias inteiras em fuga da estagnação, profissionais qualificados que trocaram a esperança nacional por um futuro mais previsível além das fronteiras.
Entre 1991, ano em que a Ucrânia emergiu como nação independente após o colapso da União Soviética, e 2024, o país perdeu 43% de sua população. Quase a metade dos ucranianos foi embora ou morreu. Um número que pode ser percebido nas escolas esvaziadas, nas maternidades em ruínas, nas cidades fantasmas onde o tempo já não encontra testemunhas. Mais do que território, a Ucrânia perde gente.
Nesta terra que já foi de Catarina e Potemkin, onde o Império Russo fincou os pilares de sua glória, não parece haver muito espaço para os sonhos liberais. Aqui, a força ainda fala mais alto que a justiça. E Makiv, silenciosa, solene, permanece como um eco desse destino —ou, talvez, como um aviso.
As fotografias que ilustram este texto tentam capturar algo que vai além da imagem —tentam registrar a solitude profunda que, aos poucos, parece ter se entranhado no tecido da Ucrânia. São imagens muito distintas daquelas que costumo produzir no exercício cotidiano da profissão, destinadas às páginas de jornais, revistas, portais de notícia.
Na rotina do fotojornalismo, as imagens pulsam: têm cor, têm vida, têm movimento. E, sobretudo, têm gente contando suas histórias. Muitas delas, aliás, foram publicadas na Folha, ao longo dos últimos anos.
Desde 2022, contudo, venho buscando outra coisa. Uma outra Ucrânia, menos urgente, menos guiada pela necessidade de narrar um fato. Uma Ucrânia desvinculada do instante noticioso, dos marcos objetivos, da crueza dos acontecimentos.
Para essa busca silenciosa, decidi levar comigo uma velha companheira: minha câmera de médio formato, uma Rolleiflex 2.8f, que me acompanha há mais de 20 anos. Tecnicamente, trata-se de uma twin-lens reflex, uma câmera de lentes gêmeas, daquelas que se olha por cima. Mas, na prática, o que vem à mente de muitos são os versos cantados por João Gilberto: “…fotografei você na minha Rolleiflex…”.
É uma câmera antiga, deliberadamente lenta. Tudo nela convida à pausa. Ao contrário das digitais modernas —com seu foco automático, seus disparos incessantes, sua prontidão ansiosa—, a Rolleiflex exige do fotógrafo outra disposição. Exige tempo. Exige silêncio. Exige escuta. Fotografar com ela é um exercício de presença: cada clique um ritual, cada enquadramento uma respiração mais funda.
Nas folgas do trabalho, venho fotografando com ela, tentando captar algo que ainda não sei muito bem nomear. Algo que começou a se formar em mim ainda no caos das primeiras semanas da invasão russa, naquele inverno de 2022.
Talvez fosse apenas intuição, ou talvez o reconhecimento de que há certas imagens que não se impõem, mas se revelam devagar, como uma lembrança antiga, ou um sonho que resiste ao despertar. Fotografar com a Rolleiflex, nesse tempo suspenso, tem sido minha forma de buscar essas imagens que escapam da notícia e mergulham na memória difusa que se guarda ao testemunhar eventos como esses.
No início, eu só conseguia ver a crueza da guerra —a valentia cega de quem luta batalhas existenciais, o cinismo endurecido daqueles que já atravessaram o front, o medo de ter a morte a rondar. Tudo ao redor era destruição. Toda dor era ruidosa: gritos cortando o ar, sangue nas calçadas, bombas explodindo, corpos dilacerados em silêncio. Havia tanta ação em torno de mim que não havia espaço para sentir. O tempo era de urgência.
Quase um ano depois, dentro de um bunker improvisado, cavado sob as árvores de uma floresta a poucos quilômetros do front, foi que percebi a solidão resignada de quem não nasceu para a guerra, mas foi tragado por ela.
Alexei, um rapaz de 28 anos, havia sido convocado meses antes. Deixou para trás o trabalho na editora da qual era sócio e, de um dia para o outro, tornou-se comandante de uma Akatsiya, um canhão soviético de 155 mm ainda amplamente utilizado nesta guerra que mistura tecnologias do século 21 com fantasmas do passado.
Cinco metros abaixo da terra, protegidos em um buraco aquecido pelo fogão a lenha, ele me contava sobre os livros que amava editar, sobre como a guerra o havia colhido de surpresa, e sobre os sonhos que guardava caso sobrevivesse àquilo tudo. Era um dia calmo. A neve caía espessa. O front, por um instante raro, parecia adormecido.
No ano passado, conheci Mika durante sua primeira folga desde que a guerra começara. Dois anos ininterruptos combatendo nas frentes do Donbas. O trauma estava nos olhos dele, vermelhos, atentos, permanentemente marejados.
Mika fazia parte do pequeno grupo que sobreviveu à ofensiva russa que tomou a fortaleza de Adviivka. Nos encontramos na estação de trem de Pokrovsk. E tudo o que ele conseguia dizer era: “Não consigo esquecer de quem ficou”.
Nos hospitais distantes do front, há centenas, talvez milhares de Mikas tentando sobreviver ao que veio depois —à paranoia, à depressão, aos traumas de uma guerra de trincheiras constantemente acossadas por drones no céu, zunindo como andorinhas metálicas e barulhentas.
“Acho que vamos precisar criar novos protocolos para diagnosticar e tratar traumas depois dessa guerra. Está todo mundo traumatizado”, me dizia o psiquiatra Oleg Borisuk, chefe do maior centro de reabilitação da Ucrânia no final de janeiro deste ano, quando o visitei.
A guerra apavora quem a viveu e aqueles destinados a vivê-la. O ímpeto patriótico que levou tantos jovens ao front arrefeceu. Já não há muitos ucranianos dispostos a dar a vida por uma derrota cada dia mais palpável, mais real.
Na silenciosa Makiv, Angelina Bondar, uma adolescente de 15 anos, contou-me que já não tem mais amigos. Todos se foram, até mesmo os colegas da sua idade. Pergunto se ela se dá conta de que caberá à sua geração reconstruir o país.
Ela faz uma pausa longa e me responde, com um ar grave, que não sabe se está preparada para isso. Peço para tirar uma foto dela com minha Rolleiflex. Ela sorri, envergonhada. E diz que não.
Folha de São Paulo