Atualizada em 09/03/2025 07:41
Foto: SOLIDÃO - Haddad: ele enfrenta o fogo amigo dos petistas, enquanto defende quase sozinho o ajuste fiscal (Renato S. Cerqueira/Ato Press/Agência O Globo/.)
Preocupado com a popularidade em queda e de olho em 2026, presidente acena de vez para o populismo econômico
Se alguém quiser saber como será a relação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
com a nova ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, pode ter uma ideia ao
rever o embate que travaram em dezembro de 2023, durante um evento em que o PT
discutiu estratégias para as eleições municipais do ano seguinte. Em um painel sobre a
política econômica deste terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
Gleisi, então presidente da legenda, e Haddad divergiram sobre pontos cruciais, a
começar pelo ajuste fiscal. Fiel ao desdém petista pelo equilíbrio das contas públicas,
Gleisi defendeu a ampliação dos gastos para estimular a economia e fortalecer o
prestígio de Lula nas urnas. “Não acredito que um déficit a mais, no ano que vem, faça
diferença”, pregou ela para a plateia de convertidos. “Por mim, faria um déficit de 1%
ou 2% (do PIB).” Acostumado com o pesado fogo amigo dos companheiros, Haddad não
se abalou. Lembrou que, nos dez anos anteriores, o Brasil acumulara um rombo de 1,7
trilhão de reais sem que houvesse um salto de prosperidade. “Fazer déficit não resolve
tudo. Não tem bala de prata”, disse ele. Quem teria se saído vencedor nesse debate entre
populismo e racionalidade? A resolução do Diretório Nacional do PT aprovada naquele
encontro deixa claro quem levou a melhor. O texto clamava que “o Brasil precisa se
libertar, urgentemente, do austericídio fiscal”.
Após a forte repercussão negativa da expressão fora das hostes petistas, Gleisi recorreu
a malabarismos verbais para convencer a opinião pública de que não estava criticando
Haddad. É óbvio que ninguém acreditou. Por essas e outras, houve forte reação ao
anúncio da nomeação da presidente do PT para a Secretaria de Relações Institucionais.
Para o mercado, a escolha de Lula é o aceno final ao populismo econômico daqui em
diante, algo capaz de isolar ainda mais Haddad na defesa do equilíbrio fiscal — o que
pode se tornar um tiro no pé do próprio governo, fora o prejuízo ao Brasil. “Ela soma
mais uma voz contra um ministro da Fazenda já frágil”, afirma Sérgio Vale, economista-‐
chefe da consultoria MB Associados.
IMPACTO – Gleisi: escolha gerou reação do mercado, com alta do dólar e queda na bolsa (Ton Molina/Fotoarena/.)
A situação de Haddad já vinha se tornando delicada antes disso, com um número cada
vez maior de vozes de aliados do governo creditando a ele a queda de popularidade de
Lula. Críticas nos bastidores passaram a ser vocalizadas em entrevistas e ganharam a
dimensão de atos concretos. No fim do ano passado, por exemplo, seis deputados
federais do PT votaram contra o pacote fiscal, e outros três se abstiveram. Isso significa
que 13% dos 68 parlamentares petistas deixaram o ministro na mão. Um deles, Rui
Falcão, ex-presidente da legenda, afirmou na ocasião que não era vassalo do governo.
“A crença de que o gasto público impulsiona a economia está no DNA do PT”, diz
Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA.
Tal credo alimenta a fritura de Haddad também no coração do governo. O chefe da Casa
Civil, Rui Costa, é apontado como um de seus maiores antagonistas no Palácio do
Planalto. Além de pressionar a Fazenda a abrir os cofres públicos, Costa ainda nutre
planos de ser o candidato à Presidência em 2026, caso Lula não concorra. Isso o coloca
em rota de colisão com Haddad, visto por muitos como o nome natural do PT nessa
situação. Haddad afirmou publicamente que não concorrerá a nada no ano que vem, mas
Costa não parece disposto a retirá-lo da frigideira. Outros integrantes do primeiro
escalão também não perdem uma chance de cutucar o colega, como Alexandre Silveira,
ministro de Minas e Energia e um dos patronos do programa Gás Para Todos, que deve
substituir o atual Auxílio Gás e ampliar seu alcance de 5,6 milhões para 20 milhões de
famílias ao custo de 3,4 bilhões de reais. Para dobrar as resistências da Fazenda,
Silveira escorou-se no Planalto. “O Brasil tem quem decide, e o nome dele é Lula”,
afirmou Silveira em entrevista às Páginas Amarelas de VEJA em agosto passado. “Dizer
que o ministro da Fazenda é quem decide a política econômica é errado.”
É verdade que todo governo enfrenta divergências internas, mas o trabalho de Haddad
seria mais fácil se Lula pusesse fim às intrigas palacianas e o apoiasse de forma efetiva
— e não apenas com palavras. Mas, à medida que sua popularidade declina e as
eleições de 2026 se aproximam, o presidente parece dar mais ouvidos aos críticos do
ministro. “Haddad enfrenta muito mais oposição dentro do governo do que fora”, diz o
cientista político Murillo de Aragão, colunista de VEJA. “Ele está lutando sozinho.”
A aposta lulista no populismo econômico é visível — tão visível que tentativas de
pedaladas fiscais para elevar os gastos por fora do Orçamento foram brecadas pelo
Tribunal de Contas da União (TCU). É o caso do Gás Para Todos, cujo plano era
transferir recursos gerados pela exploração do pré-sal diretamente para a Caixa
Econômica Federal com o objetivo de cumprir a promessa de Lula beneficiar 20
milhões de famílias. Com a manobra, apenas 600 milhões de reais dos 3,4 bilhões
necessários para bancar o programa estão previstos no Orçamento deste ano. Outro
exemplo é o Pé-de-Meia, que oferece auxílio financeiro a estudantes carentes do ensino
médio e é sustentado por fundos administrados pelo Ministério da Educação. Em
janeiro, o TCU chegou a bloquear o repasse de 6 bilhões de reais para o projeto por não
constarem na proposta orçamentária de 2025. Tanto no caso do Gás Para Todos como no
do Pé-de-Meia, o tribunal ordenou que o governo encontre um jeito de encaixar os
programas no Orçamento a ser votado pelo Congresso agora, após a volta do Carnaval.
MANOBRA - Programa Gás Para Todos: TCU impediu tentativa de pedalada fiscal (//Divulgação)
Os sinais de que o governo não vai poupar nada de olho em 2026 foram reforçados por
medidas como a liberação do resgate do saldo do FGTS por quem optou pelo saqueaniversário, que deve injetar 12 bilhões de reais na economia, e as novas regras para o
crédito consignado privado. “Lula negligencia a economia, de olho na eleição”, diz
Gabriel Barros, economista-chefe da gestora ARX. “Claramente, ele busca atalhos para
manter uma sensação artificial de bem-estar da população.”
Em qualquer país, estimular a economia em tempos de crise é louvável, mas esse não é o
caso do Brasil. Diversos indicadores mostram uma atividade aquecida. O desemprego
está no menor patamar da história, favorecendo ganhos salariais reais. Segundo o
Dieese, 85% das categorias obtiveram reajustes acima da inflação no ano passado.
Trata-se da maior proporção desde 2018, quando a série começou. O nível de utilização
da capacidade instalada na indústria mantém-se acima de 80% e não há acúmulo
anormal de estoques. Nesse cenário, incentivar ainda o consumo, sem estimular os
investimentos produtivos, apenas alimenta o pior pesadelo de Lula: a inflação, grande
responsável pela queda de sua popularidade. “Muitos palpiteiros que influenciam o
presidente se esquecem de que a inflação derrotou Joe Biden nos Estados Unidos e Olaf
Scholz na Alemanha”, diz Marcus Pestana, diretor da Instituição Fiscal Independente do
Senado.
A chegada de Gleisi ao governo pode reforçar a busca por um caminho equivocado,
fragilizando de vez Haddad, cuja cabeça já vem sendo pedida por aliados do governo.
Segundo algumas apostas, a permanência dele na Esplanada estará condicionada à
capacidade de se curvar à pressão por mais gastos. “Haddad pode falar o que quiser,
mas, quando Lula ordenar que ele pule, o ministro perguntará qual deve ser a altura do
salto para agradar ao chefe”, diz Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central e
colunista de VEJA. A eventual capitulação de Haddad deixará o BC sozinho na luta
contra a inflação — e com uma única arma: a elevação dos juros. Outra péssima notícia
para o Brasil. Como é público o antagonismo dela com Haddad, Gleisi tem procurado
minimizar o estrago. “Fui escolhida para a articulação política, e não para a economia”,
afirmou. Se alguém acreditou no milagre da conversão ao equilíbrio e à racionalidade, o
mercado deu a resposta imediata, com alta do dólar e queda na bolsa seguidas ao
anúncio da escolha dela para um posto-chave no governo. Para Haddad, que já
desabafou certa vez a um interlocutor que sua missão quase impossível era agradar, ao
mesmo tempo, à Gleisi e ao presidente do Banco Central, não poderia haver pior notícia
de tê-la agora como colega no governo.
*Publicado em VEJA, março de 2025