Atualizada em 30/03/2025 09:15
Trump Golfo da América
Imagem: Divulgação
Em apenas dois meses no governo, Donald Trump lançou uma
verdadeira ofensiva para redesenhar a América Latina como “quintal”
dos EUA e frear a ofensiva da China na região.
Abandonado por diversas administrações americanas, o continente
passou a ser um foco da expansão chinesa. Em dez anos, o presidente
Xi Jinping fez dez viagens pela região e transformou grande parte do
hemisfério Sul em um aliado comercial.
Para a Casa Branca, desmontar a ofensiva chinesa no mundo passa em
primeiro lugar por retomar sua influência na América Latina.
Não por acaso, num gesto pouco comum na diplomacia americana, o
secretário de Estado, Marco Rubio, fez duas viagens para a região
latino-americana em apenas dois meses no cargo. Filho de cubanos
exilados nos EUA, Rubio admitiu que nem sempre os americanos tiveram
o que oferecer para a região. Mas prometeu que, desta vez, será
diferente.
A questão da falta de uma estratégia americana para a América Latina
foi alvo de uma conversa de enviados do Itamaraty aos EUA, antes
mesmo da eleição de Trump.
Os diplomatas brasileiros ouviram da equipe do republicano que a meta
era impedir a expansão chinesa na região. Mas os americanos tiveram
de reconhecer que o avanço de Pequim ocorre, acima de tudo, por
conta da ausência de uma agenda positiva dos EUA na região.
Trump, ao assumir, decidiu que era o momento justamente de adotar
essa estratégia, ainda que com variações importantes — junto com a
“cenoura”, viria o “cacete”. Quem estiver ao lado dos EUA terá algum
benefício. Mas aqueles que optarem por não se alinhar, principalmente
os países menores, sofrerão consequências.
EUA alinhados com Argentina, Paraguai e
outros
Em alguns casos, o realinhamento da América Latina deu resultados
pontuais. Com a Argentina de Javier Milei, conversas foram iniciadas
para um acordo comercial, o que abalaria o Mercosul, além de um
diálogo sobre a cooperação espacial.
Com o Paraguai, o governo em Assunção não disfarçou a satisfação
quando foi citado como “exemplo” por parte da Casa Branca ao não
ceder às pressões da China e manter sua relação diplomática com
Taiwan.
“Acho que é importante reconhecer os aliados na região, como o
Paraguai, que não cederam” para a China, disse Rubio, ao ser alvo de
questionamentos em sua sabatina no Senado americano.
Em sua primeira viagem para a América Central, semanas depois de
tomar posse, Rubio adotou o mesmo tom com a Costa Rica diante da
disposição do governo local em frear a influência da China na região.
Num comunicado, o chanceler do país centro-americano, Arnoldo André,
ressaltou o status da Costa Rica como um importante aliado dos EUA,
afirmando: “Os Estados Unidos consideram a Costa Rica uma nação
amiga e um parceiro estratégico”. Ele acrescentou que o país não prevê
nenhuma consequência negativa do governo Trump.
A declaração não vem sem um cheque. A Costa Rica quer se posicionar
como um centro de semicondutores e um elo confiável na cadeia de
suprimentos global. Hoje, mais de 400 empresas internacionais operam
no país, sendo que cerca de 70% são provenientes dos Estados Unidos.
O país também adotou uma lei que limita os fornecedores de
equipamentos de telecomunicações a empresas sediadas em nações
signatárias da Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos.
Essa medida efetivamente impede a participação de empresas chinesas
— uma decisão que está alinhada com os esforços de Trump para
restringir os principais investimentos chineses na região e foi bem
recebida pelo novo governo dos EUA.
Na parada na Guatemala, Rubio conseguiu convencer o governo local a
ampliar sua capacidade de receber não apenas guatemaltecos
deportados dos EUA, mas também migrantes de outros países que
serão repatriados para seus locais de origem. “No entanto, a resposta
permanente à imigração é trazer desenvolvimento para que ninguém
tenha que deixar o país”, disse o presidente Bernardo Arévalo.
País prisão
Há ainda o acordo obtido por Trump com El Salvador. O presidente
Nayib Bukele aceitou transformar suas prisões em destinos para
criminosos que os americanos não queiram nos EUA.
Na semana passada, a chefe de segurança interna dos EUA, Kristi
Noem, visitou a megaprisão em El Salvador para onde centenas de
migrantes venezuelanos foram deportados. Para enviá-los ao país
centro-americano, Trump invocou uma legislação dos EUA raramente
usada em tempos de guerra para contornar os procedimentos legais de
deportação. Washington ainda pagou ao governo Bukele cerca de US$ 6
milhões para que recebam os prisioneiros.
Num vídeo gravado diante de uma cela com detentos que foram
despidos até a cintura, Noem gravou um alerta. “Não venham para o
nosso país ilegalmente. Vocês serão removidos e processados”, disse
ela no Centro de Confinamento de Terrorismo, a prisão de segurança
máxima. “Saibam que esta instalação é uma das ferramentas do nosso
kit que usaremos se vocês cometerem crimes contra o povo americano.”
Durante a viagem, a chefe de segurança interna dos EUA assinou um
acordo de compartilhamento de informações com o ministro da Justiça e
Segurança de El Salvador, Gustavo Villatoro. “Esse acordo fortalece o
compromisso de ambos os países na luta contra o crime transnacional”,
disse a embaixada americana, sem explicar o que envolveria a troca.
O grupo de direitos humanos Anistia Internacional avaliou que a expulsão
em massa “representa não apenas um flagrante desrespeito às
obrigações de direitos humanos dos Estados Unidos, mas também um
passo perigoso em direção a práticas autoritárias”.
O grupo disse que havia “uma conexão clara e preocupante” entre os
métodos de Bukele e as ações recentes dos EUA, já que “ambos se
baseiam na falta de um processo justo e na criminalização de indivíduos
com base em critérios discriminatórios”.
Proteção para negócios da Exxon
Na mesma linha estratégica, o governo dos EUA assinou com a Guiana
nesta semana um acordo de defesa. A meta é a de mandar um recado
claro para o governo de Nicolas Maduro de que suas reivindicações pelo
territórios repletos de petróleo do país vizinho não serão aceitos.
Rubio fez um alerta claro de que os americanos irão reagir caso
Caracas mantenha qualquer tipo de enfrentamento, principalmente numa
reunião onde a multinacional Exxon conta com os direitos de exploração.
O foco sobre a segurança e os ataques contra Venezuela, Cuba e
Nicarágua não são apenas questões ideológicas. A principal
preocupação se refere à transformação desses locais em bases para os
interesses chineses na região.
A China também esteve no centro do debate com a primeira-ministra
Mia Mottley, de Barbados. Mottley é atualmente presidente da
CARICOM, e os líderes que não foram convidados a participar da visita
de Rubio pediram que ela manifestasse sua preocupação diante da
proposta de tarifa que Trump está considerando impor aos navios
fabricados na China que atracam nos portos dos EUA. A taxa
multimilionária aumentaria a inflação na região, e os líderes querem uma
isenção para o Caribe.
Em sua parada na Jamaica, o foco de Rubio foi retomar a relação com
o país. A ilha, que já esteve à beira da falência, é agora considerada
como uma localização estratégica, próxima às principais rotas de
navegação marítima.
Os americanos não conseguiram convencer o país a abandonar o
acordo com Cuba para os serviços de médicos enviados por Havana.
Mas o alerta ficou estabelecido.
Durante a viagem, Rubio esteve também com os líderes de Trinidad e
Tobago e do Haiti. Com toda a região, a situação do crime organizado e
da imigração estiveram entre as prioridades nas conversas.
Após pressão, Panamá rompe contratos
com China
Mas as viagens não foram marcadas apenas por gestos de
aproximação. Ao passar pelo Panamá, Rubio coagiu o governo local a
romper seus acordos com a China, sob o risco de ver uma ofensiva até
mesmo militar para retomar o canal que liga os dois oceanos.
Assim, o Panamá, que foi o primeiro país latino-americano a aderir em
2017 à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China, foi também o primeiro
a deixa-lo. A esperança de Trump é de que haja um efeito dominó e que
outros países da região que aderiram ao programa de infraestrutura da
China também sigam o mesmo caminho.
Segundo o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, a ruptura
foi real no caso do Panamá.
“Em 4 de março, a BlackRock, Inc., uma das maiores empresas de
gestão de ativos dos EUA, assinou um memorando de entendimento
com a CK Hutchison Holdings Limited, solidificando um acordo para
comprar 90% da Panama Ports Company, que opera os portos de
Balboa e Cristóbal no Panamá”, explicou.
“Esses portos têm estado no epicentro das tensões entre os EUA e o
Panamá, onde Washington alegou que a empresa sediada em Hong
Kong poderia fornecer uma porta de entrada pela qual a República
Popular da China (RPC) poderia explorar os portos ao longo do Canal
do Panamá em detrimento dos interesses estratégicos dos EUA”, disse.
“Por enquanto, o acordo acalma alguns desses temores, mas seu
significado também vai muito além do Panamá e traz implicações
importantes para o futuro da concorrência entre os EUA e a China nas
Américas como um todo.
Em setembro de 2024, o Comitê de Segurança Interna da Câmara
divulgou um relatório que mostrava que os guindastes portuários navioterra fabricados pela Shanghai Zhenhua Heavy Industries Company
Limited (ZPMC) criam vulnerabilidades significativas de segurança
cibernética e segurança nacional para os Estados Unidos e seus aliados.
O centro destaca que, em 2023, seis desses guindastes foram
adquiridos para o porto de Balboa e outros sete foram comprados para
Cristóbal. A empresa também pressionou os operadores para obter
acesso remoto a seus guindastes, aparentemente para fins de solução
de problemas técnicos.
Segundo o levantamento, o Terminal Internacional de Manzanillo, o maior
porto individual ao longo da costa caribenha do Panamá, é de
propriedade da empresa Carrix, Inc., com sede em Seattle, mas
recebeu seis novos guindastes da ZPMC em outubro de 2024.
“Enquanto isso, o projeto do Terminal de Contêineres de Colón, agora
cancelado, liderado pelo Landbridge Group da China, deixou em seu
rastro 300 câmeras de segurança doadas pela Huawei e pela ZTE,
destinadas a fazer parte de um projeto complementar de “cidade
segura”, completou.
Bullying como arma
O Panamá não foi o único a sofrer a ameaça. Com o México, Trump
ensaiou a imposição de tarifas que teriam abalado a economia local,
antes de admitir uma negociação. O governo do país latino-americano
teve de aceitar a deportação de seus nacionais, colocar 10 mil soldados
na fronteira e se comprometeu em lutar contra o crime organizado.
Uma vez mais, o impacto foi sentido na China, com empresas que
planejavam ampliar investimentos no parceiro americano adiando
anúncios.
O bullying também foi a “estratégia negociadora” usada por Trump com
o governo da Colômbia. Quando ainda em fevereiro, após o presidente
Gustavo Petro anunciar que não aceitaria as condições para receber os
deportados, a Casa Branca lançou uma ofensiva comercial, financeira e
diplomática contra Bogotá, estrangulando qualquer chance de uma
resistência.
Indignado, Petro escreveu uma carta que certamente entrará na história
moderna da relação entre a América Latina e os EUA.
“Você pode me matar, mas eu sobreviverei na minha cidade que é
anterior à sua, nas Américas. Somos pessoas dos ventos, das
montanhas, do Mar do Caribe e da liberdade”, escreveu Gustavo Petro.
Ele, porém, também teve de ceder.
*Com informação do UOL