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Leonardo Sakamoto – Colunista do (UOL)
O Supremo Tribunal Federal, que teve papel fundamental na vitória da defesa da
democracia, vai tomar em breve uma decisão que pode representar uma derrota dos
direitos dos trabalhadores. O julgamento do Tema 1389, sob relatoria do ministro Gilmar
Mendes, promete mais do que um simples ajuste de jurisprudência: abre caminho para
uma reengenharia silenciosa da proteção social construída em décadas de lutas e
garantias constitucionais.
Você nunca tinha ouvido falar? Faz sentido, uma vez que o assunto tem muitos poréns e
entretantos. Mas também há muita gente torcendo para que o debate não chegue
naqueles que serão diretamente afetados por ele.
No centro da disputa, questões que parecem técnicas, mas escondem um potencial de
devastação social: a competência da Justiça do Trabalho para julgar fraudes
contratuais e a definição de quem deve provar que houve fraude.
O pano de fundo é um recurso extraordinário, mas o que está em jogo vai muito além do
caso concreto. Em abril de 2025, o STF suspendeu nacionalmente todos os processos
que tratam de possíveis fraudes em contratações travestidas de contratos civis ou
comerciais. Na prática, milhões de ações trabalhistas ficaram congeladas, impedindo
trabalhadores de acessar seus direitos.
Nesse meio tempo, empresas podem falir, encerrar atividades ou se tornarem inidôneas,
inviabilizando, mesmo depois de uma eventual vitória, a execução de decisões. Justiça
tardia, nesse caso, se confunde com justiça negada.
Mas o perigo maior está no conteúdo da futura decisão. Se o STF entender que a mera
existência de um contrato comercial basta para afastar a competência da Justiça do
Trabalho, cria-se um escudo para a fraude.
O princípio da primazia da realidade, que garante que o vínculo empregatício é definido
pelos fatos, como subordinação, pessoalidade, onerosidade, e não pela roupagem
formal, pode ser esvaziado. Em outras palavras: bastaria a um empregador redigir um
contrato de prestação de serviços para escapar ao crivo da fiscalização trabalhista. A
análise migraria para a Justiça Comum, desprovida de experiência e instrumentos
próprios para aferir relações de emprego. O resultado? Blindagem para empresas e um
convite à precarização.
A discussão sobre a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas já vinha
sendo ensaiada desde a ADPF 324, que analisou a constitucionalidade da terceirização
irrestrita. Agora, o STF pode consolidar a ideia de que, mesmo na presença dos
elementos que garantem o vínculo empregatício, basta o contrato civil para ignorá-los.
Ressalte-se aqui que não se questiona a terceirização de atividades fins, chancelada
pela Lei da Terceirização Ampla e pela Reforma Trabalhista. Terceirizar é legal, e ponto.
A questão não é a terceirização, mas fraude de relações trabalhistas – que atingem
principalmente o naco mais vulnerável da população, o que ganha menos, o que não é
famoso, o que tem medo de ser demitido e nunca mais conseguir um emprego.
A consequência é a erosão sistemática de direitos garantidos pelo Artigo 7º da
Constituição, como férias e limitação da jornada. O trabalhador perde a rede de
proteção da Previdência, contribui com valores menores ou nem contribui e fica
desamparado em caso de doença, acidente, maternidade ou aposentadoria. É a
institucionalização da precariedade.
O próprio fisco já identificou o que se esconde atrás da retórica da liberdade de
contratação: fraude. A Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
alertam que a migração forçada para o regime em que trabalhadores se tornam pessoas
jurídicas é fraude tributária relevante.
Nota técnica de Nelson Marconi e Marco Capraro Brancher, da FGV, encomendada pela
OAB-SP, apontam que se os trabalhadores por conta própria que foram incorporados no
mercado de trabalho após a promulgação da Reforma Trabalhista tivessem sido
contratados como celetistas, a arrecadação tributária teria sido pelo menos R$ 89
bilhões superior à observada (caso fossem empregados em empresas do Simples
Nacional), ou de R$ 144 bilhões (caso fossem empregados em empresas do Lucro Real
ou Lucro Presumido), considerando os valores acumulados entre 2018 e 2023.
E se 50% da força de trabalho com carteira assinada tivesse mudado para esse padrão,
a perda arrecadatória anual resultante atingiria a cifra de R$ 384 bilhões, o que
representaria 16,6% da arrecadação federal total de 2023. Ou seja, a conta da
flexibilização cai no colo do próprio Estado, e, no fim, de toda a sociedade.
Como se não bastasse, uma das consequências da decisão do STF seria transferir ao
trabalhador provar a fraude. Tradicionalmente, a Justiça do Trabalho reconhece a
hipossuficiência do empregado: se a empresa admite a prestação de serviços, cabe a
ela demonstrar que não havia vínculo de emprego. Inverter o ônus da prova,
transferindo essa responsabilidade ao trabalhador, seria condená-lo, não raro, a um
beco sem saída. A prova, nesse cenário, vira privilégio de quem já detém poder
econômico.
O que se vê, portanto, é um movimento articulado de esvaziamento da proteção
trabalhista em múltiplos níveis: jurídico, social e fiscal. Valida-se a fraude ao mesmo
tempo em que se fragiliza a Justiça especializada, precariza-se o trabalhador e mina-se
o financiamento do sistema de proteção social.
Sim, a decisão pode esvaziar a previdência e a seguridade social. Vamos acabar
criando um país em que a esmagadora maioria dos idosos serão pobres que vão
depender do BPC. E a conta não vai fechar porque o Benefício de Prestação
Continuada não depende de contribuição prévia. “Ah, mas com o dinheiro que os
trabalhadores vão receber a mais, eles podem fazer um plano de previdência privada e
pagar um plano de saúde”, defendem alguns. Em Nárnia, talvez.
O STF, que deveria zelar pela Constituição, flerta com um caminho que transfere para a
sociedade o custo da chamada “liberdade de econômica”. Até ontem, o ministro Gilmar
Mendes deliberava sobre os pedidos de entidades de todo o país para constar
como amicus curiae, partes interessadas no julgamento. As audiências públicas devem
aumentar a luz sobre o tema, mas certamente terá menos atenção que outros
relacionados na corte a liberdades individuais ou mesmo o surrado meio ambiente.
A história do trabalho no Brasil é marcada por avanços conquistados a duras penas,
muitos deles inscritos na Constituição de 1988 como direitos fundamentais. Abandonálos em nome de um suposto modernismo econômico, que, em verdade, guarda
semelhanças com os primeiros anos da Revolução Industrial, é repetir velhos erros com
nova maquiagem.
O Tema 1389 não é uma disputa hermética de juristas: é sobre o prato de comida, a
pensão por acidente, a aposentadoria e a dignidade de milhões de brasileiros. Se o
Supremo ceder à pressão da elite econômica, seja através de um liberou geral ou de
uma regra que transforme a Justiça do Trabalho em instituição que atenda apenas os
mais pobres, endossará um projeto de país onde a precarização deixa de ser exceção
para se tornar regra.

