Atualizada em 11/04/2025 09:16
Por Roraima Rocha*
No país onde “liberdade de expressão” virou senha para destilar preconceito, ofensa e ignorância, não surpreende que uma jovem acreana, branca, de família abastada, estudante de medicina, tenha se sentido à vontade para chamar o povo do próprio Estado de “seboso” em suas redes sociais. Menos surpreendente ainda é a mobilização subsequente em sua defesa: mensagens de apoio, pedidos de “compreensão” e o clássico argumento de que “foi um erro, todos erram”. Sim, erram. Mas não é a todos que se oferece a mesma indulgência.
Vamos aos fatos. A conduta da jovem pode, em tese, ser enquadrada no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, que tipifica como crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Ora, se a jurisprudência do STF já reconheceu que preconceito contra nordestinos, nortistas ou moradores de regiões específicas configura preconceito de origem, não há por que o mesmo entendimento não se aplicar à população acreana.
Sim, mesmo sendo acreana, a autora das declarações pode ser responsabilizada penalmente. O Direito não se importa com a origem do agente, mas com o caráter discriminatório e a capacidade lesiva do discurso. É possível, portanto, que um sujeito ofenda e incite o preconceito contra o grupo ao qual pertence, o que não é jurídica ou moralmente menos grave.
Frise-se: não existe no ordenamento jurídico brasileiro o crime autônomo de “xenofobia”, mas a conduta é juridicamente equiparada ao crime de racismo quando envolve preconceito de origem, como prevê o artigo 1º da Lei 7.716/89.
E como agravante, o artigo 20, § 2º da mesma lei é claro: se o crime for cometido por meio de comunicação social ou redes sociais, a pena deve ser aumentada de um terço até a metade. A internet, portanto, longe de ser palco neutro, é instrumento de ampliação do dano. Como já se discutiu amplamente no contexto do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), liberdade de expressão não é salvo-conduto para discurso de ódio.
Mas o que realmente chama atenção não é a conduta, mas a reação. Quando um garoto negro, pobre, periférico, furta um pacote de macarrão ou um celular velho, ninguém lhe oferece a dádiva do “foi um erro, ele é jovem, merece uma segunda chance”. Não. A ele, reserva-se o Código Penal em sua versão mais crua, a cela fria, a execração midiática e a etiqueta de “elemento” ou “marginal”.
Mas quando a autora do fato é branca, universitária, de classe média ou alta, e com parentes influentes, o discurso muda. Ah, a juventude é um tempo de erros, dizem. Que atire a primeira pedra quem nunca foi xenofóbico ao vivo no Instagram, Facebook ou X (Twitter), não é mesmo?
Essa seletividade penal, para usar a expressão cara à criminologia crítica, não é acaso, é projeto. O Direito Penal não pune condutas, pune perfis. Não castiga o que você faz, mas quem você é, de onde veio, onde estuda e quem é seu pai, mãe, avós. A neutralidade do sistema é um conto de fadas que se esfarela ao primeiro contato com a realidade.
Enquanto a menina branca recebe apoio e afagos virtuais, o garoto negro da periferia é sufocado por uma polícia que já chega atirando. Ela ganha comentários de solidariedade; ele ganha um BO por “resistência”. Ela “se equivocou”; ele “já era problema desde pequeno”. Ela merece empatia; ele, o paredão moral dos justiceiros de WhatsApp.
Não se trata aqui de defender linchamento moral ou punição exemplar da jovem. Mas de denunciar a hipocrisia social que tolera o erro apenas quando vem das classes altas, dos brancos, dos “nossos filhos”. É o duplo padrão de julgamento travestido de moralidade.
Se o Direito Penal é mesmo a ultima ratio, que o seja para todos. Se a empatia é virtude, que não tenha cor, sobrenome ou CEP.
E que o Ministério Público, atue com a mesma verve punitiva e inquisidora com que costuma atuar contra os pretos, pobres e periféricos. Afinal, trata-se de crime de ação penal pública incondicionada. Não depende de representação das vítimas, os acreanos.
Por fim, deixo registrado que também me solidarizo com a jovem, que errou (muito), e com sua família, que não tem nenhuma responsabilidade nisso. Mas me solidarizo principalmente com os que erram todos os dias por falta de opção, com os marginalizados, com os escrutinados pelos jornais por serem aviõezinhos do tráfico aos 13 anos de idade, porque o Brasil que deveria lhes dar escola, comida e dignidade lhes deu repressão, omissão e genocídio.
A pergunta, portanto, não é se ela deve ser punida. A pergunta é: por que tão poucos recebem o mesmo perdão da sociedade?
*Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Mestrando em Legal Studies Emphasis in International Law (Must University – EUA); Especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Gran); Especialista em Advocacia Cível (Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP); Membro da Comissão de Prerrogativas, Secretário-Geral Tribunal de Ética e Disciplina – TED, e Presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC.