IMPASSE - Alexandre Ramagem, com o advogado Paulo Renato Cintra Pinto: reação do Legislativo contra o Supremo (Rosinei Coutinho/STF)
Muito dessa aparente disputa de poder tem a ver com corporativismo e o instituto de autoproteção dos parlamentares
Por Marcela Mattos da (VEJA)
Em janeiro de 2024, quando as investigações sobre a trama golpista ganhavam
tração, ministros do Supremo Tribunal Federal foram alertados sobre o
descontentamento generalizado diante das operações policiais nas casas e
gabinetes de parlamentares. Importantes caciques do Congresso reclamavam
que as ações eram desproporcionais e enviaram um recado claro: se elas
descambassem para prisões, o Parlamento se mobilizaria para derrubar a
ordem — uma atitude que certamente faria escalar a tensão entre os poderes.
Não houve, de fato, as temidas cautelares, mas nem por isso a relação foi
pacificada. De lá para cá, deputados e senadores acumularam iniciativas para
conter o avanço de ações criminais — como ficou evidenciado durante a
votação da PEC da Blindagem, na última semana — e, ao mesmo tempo,
puseram em prática manobras para contornar decisões judiciais. A condenação
de Alexandre Ramagem (PL-RJ), o único congressista envolvido no inquérito
sobre a tentativa de golpe, pode ser o estopim da rebelião prometida no
passado.

Desde o início, o processo contra o deputado se transformou em um cabo de
guerra entre o Parlamento e o Supremo. Em seu primeiro mandato, Ramagem
foi condenado por usar, enquanto chefe da Agência Brasileira de Inteligência
(Abin), o aparato estatal para espionar inimigos políticos e para municiar o
então presidente Jair Bolsonaro com informações falsas sobre o sistema
eleitoral brasileiro. Ele terá de cumprir dezesseis anos de prisão pelos crimes
de tentativa de golpe, abolição do Estado democrático e organização criminosa.
A pena é a menor entre os oito integrantes do chamado núcleo crucial, graças a
uma decisão chancelada por mais de 300 deputados. Aprovada em maio, a
resolução previa que a ação penal deveria ser paralisada por completo porque
dois dos cinco crimes imputados a Ramagem teriam ocorrido quando ele já
estava diplomado — conforme a Constituição, nesses casos há a possibilidade
de sustar o processo. O Supremo considerou a reclamação parcialmente
procedente, mas manteve o andamento da ação em relação aos crimes
cometidos até 2022. A Câmara voltou a reagir e ingressou com uma ação,
alegando “violação direta e frontal aos preceitos fundamentais da separação de
Poderes e da imunidade parlamentar”. O recurso caiu nas mãos do ministro
relator, Alexandre de Moraes, que simplesmente o ignorou.

No último dia 11, ao anunciar o veredicto dos condenados pela trama golpista,
Moraes determinou a cassação imediata dos direitos políticos e do mandato de
Ramagem, sendo acompanhado por três dos quatro colegas da Primeira
Turma. A Câmara será formalmente notificada quando o processo transitar em
julgado, o que deve ocorrer em até dois meses. Antes disso, porém, deputados
já calculam que o ex-chefe da Abin não será expurgado por uma canetada do
Supremo. Ao contrário, o que se trabalha é para que ele seja poupado por
completo — por meio da sonhada anistia — ou estique a sua permanência
como deputado mesmo quando for preso. Cabe à Mesa Diretora encaminhar a
decisão judicial à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que inicia uma
representação contra o deputado — o que vai acontecer sem nenhuma pressa.
“O fato é que ele está condenado por uma decisão que o Supremo tomou
descumprindo uma decisão da Câmara. Mas agora a Câmara tem de seguir a
decisão do Supremo? Não existe um poder acima de outro”, afirma um bem
posicionado parlamentar. A ideia é deixar o caso em estado de animação
suspensa.
Por esse cálculo político, Ramagem pode passar a cumprir pena em regime
fechado, o que lhe impedirá de comparecer à Câmara, e ter seu processo
arrastado por um longo período até que ele atinja o número máximo de faltas.
Nesse caso, a perda do mandato é decretada pelo presidente da Câmara, e nem
sequer passa pelo crivo do plenário. O resultado seria o mesmo, mas ficaria a
mensagem de “não obediência” ao STF.

Muito dessa aparente disputa de poder tem a ver com corporativismo e o
instituto de autoproteção dos parlamentares. Preso em março de 2024 como
um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, o deputado
Chiquinho Brazão teve seu mandato cassado somente em abril deste ano,
justamente por atingir o limite de ausências nas sessões — ele,
diferentemente, até hoje não foi condenado. Já o processo contra a
deputada Carla Zambelli (PL-SP), condenada a dez anos de prisão por invadir
os sistemas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), transitou em julgado em
junho deste ano. Desde então, a CCJ da Câmara analisa a ordem de perda do
mandato expedida pelo Supremo — foragida da Justiça brasileira, Zambelli
está presa na Itália, e na última semana apareceu por videoconferência na
sessão para acompanhar a oitiva de uma testemunha. Segundo o presidente da
comissão, o caso está se arrastando em decorrência dos trâmites jurídicos com
o outro país. “Muitas vezes as pessoas querem rapidez e resultado no
julgamento, mas a gente não pode entregar isso sem cumprir esses ritos, que
são exigidos pela lei”, afirma Paulo Azi (União Brasil-BA).

Além da figura do deputado-presidiário, a batalha entre os poderes deve trazer
em breve a criação do deputado internacional. Numa manobra para não ser
cassado por faltar às sessões, o PL indicou Eduardo Bolsonaro (PL-SP) como
líder da minoria, resgatando um ato de 2015 que permite a parlamentares que
exercem a função de liderança o direito de não registrar presença no painel de
votações. O filho Zero Três de Jair Bolsonaro está desde março nos Estados
Unidos, de onde articula sanções americanas, e corria o risco de ser cassado
por ausência. Tudo indica que agora não será mais. Os casos vão se
enfileirando. O Conselho de Ética da Câmara arquivou a denúncia por
rachadinha contra o deputado André Janones (Avante-MG), que admitiu ter
embolsado dinheiro público repassado aos assessores e firmou um acordo com
a Justiça. Da mesma maneira, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), que se
envolveu numa briga com um militante do MBL, conseguiu sobrevida em seu
processo de cassação, suspenso por Motta em abril por dois meses — e jamais
retomado.

O discurso comum a todos os que são alvos de investigação: são inocentes
sofrendo perseguição da Justiça. “Se fazem isso com um parlamentar, até com
um ex-presidente, podem fazer com qualquer outro parlamentar também”,
disse Ramagem em vídeo publicado após a condenação. Esse tipo de
argumento tem a simpatia de um contingente expressivo do Congresso. Como
se sabe, há pelo menos oitenta inquéritos destinados a apurar irregularidades
envolvendo as emendas parlamentares. Na última semana, o ministro Flávio
Dino cobrou um posicionamento da Procuradoria-Geral da República sobre as
ações — o que, na prática, se reflete na tramitação dos processos e permite que
muitos deles comecem a ser julgados em breve. Ou seja, perspectivas de
futuras prisões no horizonte — ou uma nova “violação direta e frontal aos
preceitos fundamentais da separação de Poderes e da imunidade parlamentar”.

