O filósofo Pablo Ortellado (//Divulgação)
Pablo Ortellado, diretor da More in Common, detalha como pensa uma massa de ‘invisíveis’ que representa mais da metade do eleitorado
Por Marcela Mattos | VEJA
Entre janeiro e fevereiro deste ano, 10.000 brasileiros foram ouvidos sobre
quase 200 perguntas relativas a temas que rendem acaloradas discussões
dentro e fora das redes sociais. Questionamentos sobre a confiança nas
instituições, direitos humanos, cotas raciais e ideologia feminista, entre outros
assuntos sensíveis, foram apresentados a entrevistados de todas as regiões do
país. O levantamento, feito pela think tank More in Common em
parceria com a Quaest, indicou que a população brasileira, ao contrário do
que possa parecer, tem uma parcela mínima de “radicais” de esquerda e de
direita – juntos, eles somam apenas 11% do eleitorado.
Já um segmento tão volumoso quanto silencioso, ocupado por 54% da
população, consegue transitar fora da cartilha ditada pelos principais líderes
desses espectros – o presidente Lula e o ex-presidente Jair Bolsonaro – e
apoiar tanto valores progressistas quanto conservadores. Esse grupo, chamado
de “invisíveis” na pesquisa, foge dos embates ideológicos, opta pelo caminho
da moderação e do pragmatismo e deve ser decisivo para a corrida eleitoral de
2026. “A gente investigou um conjunto grande de temas e encontrou esse
grupo consistentemente não polarizado. Assim, há uma constatação de que
existe um espaço para alternativas. Por não serem polarizadas, essas pessoas
podem ser mobilizadas por novos projetos. Mas isso vai depender da
habilidade, da capacidade e da oferta dos candidatos”, afirma Pablo Ortellado,
professor da USP e diretor da entidade responsável pelo levantamento. Confira
a íntegra.
O que mais chamou atenção no estudo? O estudo mostrou que quando a
gente divide o público entre o eleitor de Bolsonaro e o eleitor de Lula, e
acredita-se que um é majoritariamente a favor de uma coisa e o outro é contra,
dá a impressão de que o Brasil está dividido em dois. A natureza do nosso
estudo é mostrar que não está. Quando você segmenta, você vê que além
desses polos, tem dois segmentos com uma posição forte e tem mais da
metade da população que certamente não está polarizada. Essa metade tem
posições embaralhadas, moderadas, não polarizadas sobre os temas que, por si
só, são polarizantes.
Esse grupo de invisíveis é necessariamente desiludido ou
desinteressado com a política? Eles têm posições não polarizantes e baixa
participação política. Não compartilham notícias nas redes sociais, não
discutem política com os amigos e com a família, não vão a protestos e votam
menos. Mas a gente teve uma surpresa: eles não são despolitizados e, ao
contrário disso, têm elaborações políticas muito consistentes. Eles se afastam
e rejeitam a política polarizada – porque acham exaustivo e perigoso que as
pessoas fiquem cobrando deles –, mas têm uma elaboração pragmática voltada
para o serviço público, para oferta de empregos, para a qualidade da saúde.
E em relação à agenda de costumes? Eles têm comportamentos
desorganizados. Não têm o comportamento automático de dizer ‘Eu sou a
favor da punição rigorosa a bandidos’ ou ‘Eu sou a favor da defesa dos direitos
humanos’. A gente investigou assuntos relacionados a direitos humanos,
sexualidade, religião, armamentos, e para todos eles há posições
intermediárias.
O levantamento pode ser algum indicativo sobre um apoio a uma
terceira via ou a um candidato novo? O nosso achado não é eleitoral, mas
tem repercussões eleitorais, porque se você tem um grupo grande que não tem
posições polarizadas, dali podem sair várias coisas. Mas é importante destacar
que esse grupo não é centrista, até porque essa é uma posição política
demarcada. Um pedaço é lulista, um pedaço é bolsonarista, o outro é a favor de
um tema específico. Não tem aqueles alinhamentos automáticos da
polarização, eles são mais independentes. Esse espaço pode ser convertido
eleitoralmente em propostas de esquerda, de direita e de centro. A gente
investigou um conjunto grande de temas e encontrou esse grupo
consistentemente não polarizado. Assim, há uma constatação de que existe um
espaço para alternativas. Por não serem polarizadas, essas pessoas podem ser
mobilizadas por novos projetos. Mas isso vai depender da habilidade, da
capacidade e da oferta dos candidatos
É possível resumir o que esses invisíveis querem e pensam? Eles
querem bons serviços públicos, segurança, emprego e saúde. Esses invisíveis
são as pessoas mais pobres e menos escolarizadas, então são essas as
principais preocupações desse setor da população. Eles entendem o problema
do Sistema Único de Saúde (SUS), entendem o problema da escola pública,
veem os fracassos e os desafios do governo. São desideologizados e têm certas
posturas conservadoras e certas posturas progressistas. Não é que sejam
pessoas que não se interessam por política e estão focadas em sobreviver. Mas
eles simplesmente sentem que expressar a opinião política na esfera pública é
um campo minado, então preferem ficar em silêncio.
Até entre o perfil mais progressista dos entrevistados há posições
mais conservadoras. Foi uma surpresa? Há cerca de cinco anos, as
pesquisas não recolhiam a identidade política de direita e de esquerda porque
havia um entendimento de que esses marcadores exigiam uma sofisticação
política que o brasileiro não tinha. Parecia ser incoerente quando o
entrevistado falava que era de direita, mas era a favor de uma presença forte
do Estado. Hoje você vê que os segmentos de direita e de esquerda são
bastante coerentes em termos de alinhamentos automáticos da polarização
política. Mas esse grupo dos invisíveis não tem isso. Sobre um tema de
segurança pública, eles vão ser um pouco mais conservadores. Já sobre
direitos humanos, um pouco mais progressistas. Eles não têm um padrão que
você consegue discernir, ao contrário dos outros quatro segmentos. E é um
nível de organização política muito difícil de a gente ter num nível
populacional tão grande. Metade da população brasileira, 100 milhões de
pessoas, está se comportamento de maneira politicamente coerente. Isso é
totalmente novo.
É possível chegar à conclusão de que essa guerra cultural não agrega
numa eleição? Na verdade, ela mobiliza. As guerras culturais dividem,
mobilizam as pessoas e geram tamanha energia de mobilização que terminam
prevalecendo. Não é só o barulho. Essa pessoa que está muito entusiasmada é
um militante. Ela vai falar, vai puxar voto. E os invisíveis não têm essa energia.
Na verdade eles têm o oposto, estão fugindo dessa briga. No processo eleitoral,
as opções que aparecem são as opções que estão sendo levadas por essa
energia militante dos polos. E elas terminam fazendo parecer que essas
energias dos polos são maioria do Brasil, que certamente não são. É a
dinâmica eleitoral: se gera mais engajamento, se gera mais militância, se gera
organização política, gente batendo na porta, falando com vizinho. É uma
massa de milhões de pessoas de cada lado.
Na ponta dos extremos, quem são os polarizados? Entre os
progressistas, 40% ganham acima de 10 mil reais e uma parcela grande tem
curso superior. No Brasil, como o Lula ganha entre os pobres, a gente não
consegue enxergar isso que é mais claro em outros países. Já é sabido há
bastante tempo que o progressista é mais escolarizado e mais rico, mas o voto
no Lula escondia isso. Eles são muito deslocados do Brasil, o que permitiu que
os adversários, que são os conservadores, criassem um discurso populista um
pouco conspiratório os acusando de ser uma elite que tenta incutir valores
progressistas num povo conservador. E esse discurso pegou porque o
progressismo, de fato, é socialmente isolado. Demograficamente, é diferentão:
é rico, escolarizado e não cristão. E pegou também porque o progressismo tem
algumas opiniões que são muito impopulares nas quais eles se destacam. Isso
não acontece do outro lado. Os patriotas, que são mais religiosos e muito
conservadores, têm posições mais próximas dos outros segmentos. E isso tem
um desdobramento: o fato de os conservadores atribuírem aos progressistas o
domínio das instituições faz com que eles rejeitem as instituições – não
confiam na Justiça, nas universidades e na imprensa, se informando
principalmente pelo Whatsapp. É tudo um problema só.

