(Por Juliana Sayuri Do UOL, em Brasília)
Ainda era madrugada quando os painéis do aeroporto Santos Dumont, no Rio,
começaram a ser atualizados freneticamente, sinalizando um dia de caos e um novo
capítulo na relação conflituosa entre passageiros e companhias aéreas.
Naquele dia 30 de setembro, um vazamento de óleo interrompeu pousos e
decolagens por quase 12 horas, mas o episódio revelou algo maior que um
contratempo operacional: a fragilidade de um setor que vive em turbulência
permanente —entre altos custos e tributos, judicialização nas alturas e passagens
caras.
O UOL ouviu nos últimos meses empresários, técnicos, gestores, advogados e
agentes públicos para entender o preço dos bilhetes aéreos no Brasil —e há
expectativa de a tarifa média subir mais, acima da inflação.
Os valores são afetados por uma combinação de fatores, dizem especialistas. Entre
eles:
-o preço do combustível, que varia de acordo com o dólar;
-o custo do leasing (arrendamento) das aeronaves, também atrelado à moeda
americana;
-e o alto número de ações judiciais contra companhias aéreas, a chamada
“judicialização”.
Esse cenário afasta o interesse de companhias “low cost” no país, avalia o
economista Ronei Glanzmann, ex-secretário de Aviação Civil do Ministério da
Infraestrutura entre 2019 e 2022, hoje CEO da MoveInfra.
Analistas também apontam a forte concentração do setor —que poderia aumentar
caso a fusão entre Azul e Gol tivesse avançado. A proposta, alvo de críticas, foi
descartada no fim de setembro.
“Historicamente, o Brasil não fez uma política de transporte para a aviação civil,
fez uma política de infraestrutura —construir aeroporto, fazer concessões. Não
adianta ter aeroporto e não ter voo”
–Dario Rais Lopes, secretário de Aviação Civil entre 2016 e 2019
Outras fontes ouvidas pelo UOL ponderam que, embora o setor lide com custos
altos em dólar e lucros mais modestos em real, é o passageiro quem sente no bolso
as oscilações de mercado.
Esses fatores, dizem, se somam às “bagagens” históricas do setor: a sensação de
pagar cada vez mais —pelas passagens e pelas taxas extras— por um serviço que
nem sempre entrega o prometido, o que alimenta o ciclo de reclamações e ações
judiciais.
Companhias aéreas implementaram mudanças na cobrança pela bagagem de
mão, assunto que está sendo discutido no Congresso.
O setor, por sua vez, alega que a conta não fecha e já projeta novos aumentos.

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Aéreas sob pressão
No fim de agosto, representantes das companhias aéreas se reuniram com o líder
da Frente Parlamentar de Portos e Aeroportos, deputado Paulo Alexandre Barbosa
(PSDB), e alertaram: com o aumento de impostos, as passagens ficarão ainda mais
caras.
Juliano Noman, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear),
afirmou, em reunião acompanhada pelo UOL, que o reajuste do IOF —de 0,38%
para 3,5%— e do Imposto de Renda —de 3% em 2026 e 15% em 2027— obrigará
as companhias a repassar os custos aos consumidores.
A pauta também foi levada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em encontro
no mês passado, com a presença de representantes de Azul, Gol e Latam.
Segundo a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), a tarifa real média de julho foi
de R$ 710, sem incluir a taxa de embarque.
As passagens aéreas já haviam subido quase 20% em agosto, conforme o IPCA,
índice oficial de inflação.
Em resumo: o que já era caro ficou mais caro —e tende a subir novamente com o
impacto tributário.
Além disso, pesam as taxas extras, criadas com a cobrança de serviços que antes
faziam parte do pacote básico. Essa é uma das principais estratégias do setor para
equilibrar as contas.
Desde 2017, quando passaram a cobrar pelo despacho de bagagens, as
companhias aéreas já faturaram cerca de R$ 12 bilhões com taxas adicionais.
Corrigido pela inflação, o valor arrecadado saltou de R$ 864 milhões, em 2020, para
R$ 1,9 bilhão, em 2024.
Só a cobrança pela escolha de assento, por exemplo, passou de R$ 113 milhões
(na Gol, em 2017) para R$ 596 milhões em 2024.
É um negócio bilionário: globalmente, as cobranças por serviços extras
movimentaram US$ 137 bilhões em 2024 e devem atingir US$ 145 bilhões em 2025,
segundo a Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo), que representa o
setor.

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‘Bagagens’ históricas
Quando as cobranças extras começaram, em junho de 2017, o tema gerou
polêmica: foi discutido em audiências públicas da Anac, virou alvo de ação do
Ministério Público Federal e mobilizou advogados, associações de consumidores,
companhias aéreas e a imprensa.
Na época, a Abear argumentava que a cobrança adicional aumentaria a
competitividade do setor e, no fim, resultaria em passagens mais baratas.
“Na ponta, isso significará melhores serviços por preços mais baixos”, escreveu
Eduardo Sanovicz, então presidente da Abear, em artigo publicado na Folha de
S.Paulo em abril de 2016.
Mas isso não ocorreu.
De acordo com dados da Anac, o preço das passagens subiu 28% desde então:
corrigida pela inflação, a tarifa média passou de R$ 491 em junho de 2017 para R$
613 em junho de 2025.
O setor atribui o aumento principalmente à pandemia de covid-19, que mergulhou
as companhias em uma crise profunda e levou Latam, Gol e Azul a pedir
recuperação judicial nos Estados Unidos.
A aviação demorou a pousar no “pós-pandemia”. Só em 2023 o país voltou a
registrar 91,4 milhões de passageiros transportados, número próximo ao período
pré-crise.
Mesmo assim, o equilíbrio financeiro ainda está longe de ser retomado.
Segundo Marcus Quintella, diretor do Centro de Estudos em Transporte da FGV, o
setor pode ter recuperado o volume de passageiros, mas continua enfrentando
custos elevados que se refletem no preço final das passagens.
“Ainda é um preço médio real maior do que nos anos anteriores à pandemia”,
reforça Alessandro Oliveira, especialista em economia do transporte aéreo do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), que considera a queda recente insuficiente
para compensar os aumentos acumulados.

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Todos a bordo?
No fim de agosto, a Abear lançou um novo posicionamento de marca durante um
jantar em Brasília, que contou com a presença do secretário-executivo do Ministério
de Portos e Aeroportos, Tomé França, e do presidente da Embratur, Marcelo Freixo.
“Não há possibilidade de um turismo minimamente qualificado se não houver
companheirismo, cumplicidade e relação de trabalho com as companhias aéreas”,
afirmou Freixo no evento.
O presidente da Abear, Juliano Noman, declarou que o setor está “virando a página
da pandemia” e que a associação está “obcecada” por uma agenda de redução de
custos, com o objetivo de atingir 140 milhões de passageiros por ano até 2030 —
quase 20 milhões a mais do que o volume atual.
Embora defenda políticas públicas voltadas à inclusão da classe C, a agenda
mencionada por Noman prioriza a redução de custos operacionais das companhias
aéreas.
“A judicialização, por exemplo, deve bater recorde em 2025, representando mais de R$ 1 bilhão em custos para as empresas”
-Juliano Noman, presidente da Abear
AAbear afirma que há no país uma “indústria da judicialização” e que o elevado
número de ações “não corresponde à qualidade do desempenho e dos serviços
oferecidos”.
Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há atualmente 107 mil
processos abertos contra a Azul, 87 mil contra a Latam e 57 mil contra a Gol.
Apesar dos números expressivos, as companhias aéreas não estão entre os
maiores alvos da Justiça. No top 20 de litigantes do país figuram principalmente
órgãos públicos (como o INSS, líder do ranking), bancos e uma empresa de
telefonia (Oi).
No setor de telecomunicações, por exemplo, os processos superam os das aéreas:
Oi, 127 mil; Telefônica, 113 mil; e Claro, 79 mil.
“Se há peso [das ações judiciais] no orçamento das companhias, é porque os pedidos
vêm sendo julgados procedentes pelos tribunais”, afirma o advogado Gabriel Britto.
O advogado João Mello, que representa familiares das vítimas do voo 2283 da
Voepass, explica que muitos passageiros nem sequer sabiam que viajariam pela
empresa, já que compraram bilhetes da Latam. A informação, segundo ele, estava em
“letra miúda” nos contratos.
O caso foi encerrado por meio de acordos extrajudiciais, após as famílias considerarem
razoáveis as indenizações oferecidas pelas companhias aéreas.
A advogada Renata Souza, especialista em direito do consumidor e do setor aéreo,
ressalta que as indenizações por cancelamentos e atrasos costumam variar de R$
1.000 a R$ 10 mil.
“Na verdade, a indenização deveria ser maior justamente para a companhia aérea sentir no bolso. A ideia não é enriquecer o passageiro, mas ter um caráter punitivo e pedagógico. Punir quem errou e evitar que o erro se repita”
-Renata Souza, advogada

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‘Virou rodoviária?’
Viajar de avião se tornou cada vez mais comum no Brasil desde os anos 2000,
segundo dados da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
O índice RPK —que mede a demanda de voos multiplicando o número de
passageiros pagantes pela quilometragem percorrida— era de 2,4 bilhões no início
da década.
A conta é feita multiplicando o número de passageiros pagantes e a quilometragem
percorrida.
Em 2010, o número quase triplicou, alcançando 6,5 bilhões. Foi nesse período que
se popularizou a expressão “aeroporto virou rodoviária”.
Em 2020, o índice subiu para 9,8 bilhões, mas a pandemia provocou uma queda
abrupta, e o setor levou anos para se recuperar.
Somente em janeiro de 2025, a aviação brasileira voltou à mesma marca pré-covid
(9,8 bilhões).
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem mencionado com frequência a
importância da inclusão no transporte aéreo —tema recorrente desde sua
campanha eleitoral.
Logo após reassumir o cargo, anunciou o programa Voa, Brasil, do Ministério de
Portos e Aeroportos, que prometia oferecer passagens de até R$ 200 a partir de
2023.
O programa, porém, só saiu do papel em julho de 2024 e, um ano depois,
conseguiu viabilizar apenas 45 mil reservas de passagens —cerca de 1,5% dos 3
milhões previstos pelo governo federal.
Procurado pelo UOL, o ministério classificou o Voa, Brasil como “uma iniciativa
exitosa”, mas não informou quantos bilhetes foram efetivamente disponibilizados
pelas companhias aéreas.
A pasta respondeu que “não faz parte do funcionamento da plataforma informar a
quantidade de passagens disponíveis, pois a oferta depende dos assentos ociosos
nos voos, datas e horários oferecidos”.

Sala VIP no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos
Imagem: GRU/Divulgação
Mais VIP
A cobrança pelo despacho de bagagens voltou a ser discutida na tramitação da MP
do Voo Simples —medida provisória de autoria do governo Jair Bolsonaro (PL), em
2021, aprovada pelo Congresso em 2022 e sancionada por Lula em 2023.
O trecho que previa a volta da gratuidade para bagagens foi vetado em 2022.
No veto, argumentou-se que a medida “contraria o interesse público”, pois, caso as
empresas fossem obrigadas a oferecer a franquia, o custo seria repassado a todos
os passageiros.
Na prática, as passagens não ficaram mais acessíveis desde que a cobrança extra
entrou em vigor.
Apesar do alto custo, a demanda segue alta.
Atentos ao público de renda mais elevada, bancos investiram recentemente no
segmento, além das salas VIP nos aeroportos: o Itaú lançou um app próprio para
compra de passagens aéreas; o Nubank inaugurou o braço Nu Viagens; e o BTG
construiu uma ala própria no aeroporto internacional de Guarulhos.
Conforme dizem fontes do setor, a “classe A” nunca vai deixar de viajar. As outras é
que são “sensíveis” ao preço das passagens.

