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sexta-feira, 22 de agosto de 2025
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Provas obtidas por VEJA mostram que Mauro Cid mentiu no STF sobre mensagens

Publicado em 14/06/2025

Em depoimento no Supremo, delator não contou a verdade a respeito de conversas comprometedoras que manteve em uma rede social

A defesa de Jair Bolsonaro nunca escondeu que uma das estratégias para
tentar livrar o ex-presidente da acusação de golpe é desqualificar as revelações
feitas pelo tenente-coronel Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens fez um acordo
de delação premiada e, em troca de benefícios, ajudou a PF a montar o quebracabeça do suposto plano urdido no fim de 2022 para anular as eleições,
impedir a posse de Lula e manter o ex-capitão no poder. Na segunda 9 e na
terça 10, o Supremo Tribunal Federal começou a interrogar os oito réus
acusados de integrar o núcleo central da conspirata. Cid foi o primeiro a ser
ouvido. De uma maneira geral, repetiu boa parte do que já havia dito antes.
Em vários momentos, no entanto, soou tatibitate ao narrar certas passagens e
foi acometido por alguns estranhos lapsos de memória. Ao longo de quase
quatro horas de depoimento, repetiu incontáveis vezes “não me lembro” e “não
me recordo”.

DETALHES - Cid conta que prestou depoimento durante três dias e reclama de manipulação (./.)

Uma novidade capaz de provocar uma turbulência surgiu no final da audiência,
quando um dos advogados de Jair Bolsonaro, Celso Vilardi, fez uma pergunta
fortuita. “Quero saber se ele fez uso em algum momento para falar de delação
de um perfil no Instagram que não está no nome dele”, indagou. Cid disse que
não. O defensor do ex-presidente insistiu: “Ele nunca usou perfil de mídia
social para falar com ninguém?”. Cid, de novo, garantiu que não. “Conhece um
perfil chamado @gabrielar702?”, tentou mais uma vez o advogado. Cid, nesse
momento, gaguejou: “Esse perfil, eu não sei se é da minha esposa”.

.
PERSEGUIÇÃO - O ex-ajudante de ordens diz que se sentiu pressionado e que os investigadores teriam um
objetivo preestabelecido, que era prender o ex-presidente (./.)

Era uma armadilha — e o tenente-coronel, ao que parece, caiu nela sem
perceber. Ao assinar o acordo de delação premiada com a Justiça, ele assumiu o
compromisso de falar a verdade, manter em segredo o teor de suas revelações,
não ter contato com outros investigados nem usar redes sociais. Vilardi sabia
que Cid havia desrespeitado ao menos duas determinações impostas pelo
ministro Alexandre de Moraes, relator do processo no STF — e as provas de que
isso de fato aconteceu estão em um conjunto de mensagens trocadas entre o
tenente-coronel e uma pessoa do círculo próximo a Jair Bolsonaro. VEJA teve
acesso aos diálogos. Eles mostram que Cid, já na condição de delator, fazia jogo
duplo. Enquanto fornecia à PF informações sobre a movimentação
antidemocrática, contava a pessoas próximas uma versão completamente
diferente do caso. Nessas conversas, revelou a terceiros o teor de seus
depoimentos à PF e bastidores do que se passava durante as audiências. O
militar fala em pressões, conta que o delegado responsável pelo inquérito
tentava manipular suas declarações e diz que Alexandre de Moraes já teria
decidido condenar alguns réus antes mesmo do julgamento. Essas confidências,
em tese, podem resultar na anulação do acordo de colaboração e, por
consequência, na revisão dos benefícios dados ao tenente-coronel. Há um
problema adicional para o delator. Antes do início do interrogatório, Cid foi
advertido por Moraes sobre a obrigação de falar apenas a verdade. Ao afirmar, na
sequência, que não usou a rede social, ele mentiu.

NA MIRA - Moraes: magistrado é alvo de comentários e apelidos pouco amigáveis (./STF)

As mensagens obtidas por VEJA foram trocadas entre 29 de janeiro e 8 março
de 2024. O acordo de colaboração premiada havia sido homologado por
Alexandre de Moraes cinco meses antes. Nesse período, Cid usava
tornozeleira, tinha obrigação de se apresentar semanalmente a um juiz e já
estava proibido de se comunicar com investigados e falar sobre o conteúdo de
sua delação. Por alguma razão, ele decidiu burlar a determinação de Moraes,
usando o Instagram @gabrielar702 para conversar com colegas e pessoas
diretamente interessadas no andamento das investigações. Nos diálogos, fala
abertamente das longas oitivas que estava tendo de enfrentar — “Foram três
dias seguidos” — e do desconforto em relação ao trabalho dos investigadores —
“Toda hora queriam jogar para o lado do golpe… e eu falava para trocar porque
não era aquilo que tinha dito”. Há várias citações a Alexandre de Moraes,
identificado pelas iniciais “AM”. Em uma delas, o tenente-coronel diz ao
interlocutor que o “jogo é sujo”, que as petições dos advogados não adiantam
nada e que o ministro “já tem a sentença pronta” para condenar ele, o “PR,
Heleno e BN” — referência a Jair Bolsonaro e aos generais Augusto Heleno e
Walter Braga Netto.

ARMADILHA - Vilardi e Oliveira Lima: advogados pretendem usar mentira para pedir anulação da delação premiada (Ton Molina/STF)

Em outra conversa, ao fazer considerações sobre os depoimentos que estava
prestando, o delator é indagado sobre a postura do delegado que conduzia o
inquérito. “Sabe tentar te conduzir para onde ele quer chegar”, ressaltou Cid. O
interlocutor então pergunta se o “ele” é Alexandre de Moraes ou Luís Roberto
Barroso, presidente do STF. Cid responde: “AM é o cão de ataque”, “Barroso é o
iluminista pensador”. E arremata: “Quem executa é o AM”. As críticas a Moraes,
aliás, são constantes, com algumas variações de nível. O ministro, segundo o
delator, “tem talento”, mas para ser um “grande pensador Netflix”. “Não precisa
de prova!!! Só de Narrativas!!!! E quando falam de provas… Metem os pés pelas
mãos… Como foi com FM… que não viajou aos EUA”, ressalta o tenente-coronel,
se referindo a Filipe Martins, o ex-auxiliar de Bolsonaro preso por ordem do
ministro por supostamente ter tentado fugir do país, o que até hoje não foi
comprovado.

PRERROGATIVA - Gonet: o procurador-geral da República também pode pedir o rompimento do acordo de colaboração (Antonio Augusto/STF)

Cid se mostra resignado com o futuro. “Eu acho que já perdemos… Os Cel PM
(coronéis da Polícia Militar do Distrito Federal) vão pegar 30 anos… E depois
vem para a gente”, diz. Uma das alternativas naquele momento para evitar as
prisões de todos, na avaliação dele, seria um movimento conduzido pela
cúpula do Congresso. “Só o Pacheco ou o Lira vai (sic) nos salvar. O STF está
todo comprometido. A PGR vai denunciar”, diz. A outra alternativa
vislumbrada era a ascensão de Donald Trump, então candidato a presidente
nos Estados Unidos, que poderia impor sanções ao Brasil. “Uma coisa que
pode mudar… é uma vitória do Trump… E o Brasil começar a ter sanções…
igual Nicarágua e Venezuela”, escreveu, antecipando, sem saber, o que, de fato,
pode ocorrer. Cid também faz questão de deixar claro nas mensagens que não
fez acusações de golpe contra Jair Bolsonaro. “Eu falava que o PR não iria
fazer nada”, diz. O delator fala do desejo de reagir a Moraes e das estratégias de
defesa dos seus advogados, que ele considera inúteis. “No final todo mundo
acha que não dará em nada… Só eu voltar para a cadeia… junto com o PR”, diz.

PETARDOS - O tenente-coronel faz críticas aos ministros do Supremo, particularmente a Alexandre de Moraes, relator do processo sobre a suposta trama golpista (./.)

Braço direito de Bolsonaro durante os quatro anos de governo, o tenentecoronel acompanhava reuniões e conversas de toda natureza e tinha acesso à
cúpula militar. Em agosto de 2023, convencido de que poderia ser condenado a
até trinta anos de prisão, o tenente-coronel decidiu delatar. As revelações dele
foram consideradas fundamentais para a apresentação da denúncia contra o
chamado “núcleo crucial” da tentativa de golpe — formado pelo ex-presidente,
os ex-ministros Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres e Paulo
Sérgio Nogueira, pelo ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
Alexandre Ramagem e pelo ex-comandante da Marinha Almir Garnier. Cid foi
citado 179 vezes na peça de acusação da Procuradoria-Geral da República e
prestou nove depoimentos antes da fase de interrogatório. Sua colaboração
serviu como linha mestra da denúncia. As provas fornecidas por ele incluíram
nove celulares, três computadores, além de tablets e um sem-número de
mensagens e arquivos que deram dimensão, rosto e gravidade à tentativa de
golpe.

DEPOIMENTOS – Andrei Rodrigues, diretor da PF: queixas de Cid sobre os delegados que conduziram os inquéritos (Ton Molina/Fotoarena/.)

O acordo de colaboração tem cláusulas rígidas. Para ter direito a benefícios,
Cid não pode mentir, omitir, desviar a investigação com versões conflitantes
nem proteger ninguém. No interrogatório do STF, ladeado de Bolsonaro e
outros cinco integrantes da alta cúpula do antigo governo — Braga Netto, que
está preso, prestou depoimento por videoconferência—, ele reafirmou ter
presenciado reuniões entre o ex-presidente e militares nas quais foram
discutidas medidas que poderiam ser implementadas para impedir a posse
de Lula, disse que Bolsonaro acreditava em fraude nas urnas eletrônicas,
repetiu que o ex-candidato a vice enviou dinheiro para os militares das Forças
Especiais do Exército, reproduziu os xingamentos que eram proferidos contra
o ministro Alexandre de Moraes e confirmou ter ouvido que o então
comandante da Marinha teria colocado suas tropas à disposição do expresidente. Para o Ministério Público, essas informações, aliadas a
documentos e outros depoimentos colhidos durante a investigação, não
deixam dúvidas de que Bolsonaro e seus auxiliares tentaram um golpe de
Estado no fim de 2022.

PROCESSO - Sessão histórica: o interrogatório dos réus durou dois dias e não produziu novidades sobre o caso (Antonio Augusto/STF)

O delator, no entanto, também minimizou a relevância do que havia contado.
Segundo ele, apesar de ter analisado minutas que previam anular a eleição e
até a prisão de ministros do STF, Bolsonaro nunca pensou em golpe — algo
claramente sem sentido dentro do contexto. Muitos dos diálogos
comprometedores encontrados nos telefones dos envolvidos, inclusive no dele,
seriam “conversas de bar”, “bravatas” ou lamúrias. Disse que uma de suas
funções era servir de “anteparo” do presidente, evitando que ideias e propostas
esdrúxulas chegassem ao chefe. Afirmou ainda não se lembrar ao certo em que
local do Alvorada teria recebido de Braga Netto um maço de dinheiro para
pagar militares que supostamente atuariam na operação golpista. A postura
pouco firme do delator no Supremo abriu o flanco para a defesa de alguns
réus. O general negou ter endossado ou financiado planos golpistas, alegou
que não deu ordens para desqualificar militares que, segundo a acusação, eram
reticentes ao golpe e acusou Cid de mentir a seu respeito. Principal atingido
com a delação de seu antigo auxiliar de confiança, Bolsonaro também negou
todas as acusações. Refutou ter planejado um golpe de Estado, resumiu
reuniões com militares a conversas informais, disse que as discussões que teve
miravam uma “alternativa constitucional” e afirmou não ter mexido em
minuta golpista ou dado ordens para prender autoridades. Para a defesa do expresidente, o interrogatório de Cid foi a melhor coisa que aconteceu desde o
início do processo.

JOGO DUPLO – Cid fala que a sentença já estaria pronta antes do julgamento e, mais uma vez, defende o ex-presidente das acusações de liderar a conspirata (./.)

Pelas cláusulas do acordo do ex-ajudante de ordens, se a delação for cancelada,
ele volta a responder pelos mesmos crimes dos demais réus. Se condenado,
pode pegar até quarenta anos de prisão. Em troca das revelações, o tenentecoronel pediu a concessão de perdão judicial ou uma condenação não superior
a dois anos. Como ele já ficou preso preventivamente por cinco meses e está
com tornozeleira há mais de dois anos, a pena já estaria devidamente
cumprida. Livre da cadeia, Cid poderia seguir a carreira militar, inclusive com
direito a promoções. Os benefícios da delação são extensivos ao pai dele, o
general Lourena Cid, que está sendo investigado por ajudar Bolsonaro a
vender presentes recebidos durante o exercício do mandato, à esposa e à filha.
Encerrado o processo, todos ainda teriam direito à segurança da Polícia
Federal. Tudo isso agora corre risco. “Como grande parte do conjunto
probatório demonstrativo da autoria delitiva decorreu da colaboração
premiada, se ela cair, de uma certa maneira isso vai ensejar o enfraquecimento
geral do conjunto probatório”, diz Gustavo Sampaio, professor de direito
constitucional da Universidade Federal Fluminense, falando em tese.

O teor das mensagens no Instagram é parecido com os áudios obtidos e
divulgados por VEJA no ano passado, ocasião em que Cid acabou preso e seu
acordo de delação por pouco não foi rompido. Na época, justificou que as
conversas eram um mero desabafo de quem atravessava uma situação difícil.
Essa explicação, se repetida hoje, provavelmente será insuficiente. Além de
desrespeitar as regras de confidencialidade, ele dessa vez mentiu ao tribunal, o
que é crime. Todos os envolvidos no caso podem pedir o rompimento do
acordo de delação e utilizar a transgressão de Mauro Cid para tentar colocar
em dúvida boa parte do que foi levantado no processo — hoje são quase 80
terabytes de evidências — ou mesmo usar a descoberta para conseguir uma
divergência na Primeira Turma e transferir os embates para o plenário do STF,
onde, acreditam, o caso pode tomar outro rumo. A PF e a PGR também podem
requisitar a rescisão da delação. A decisão caberá a Alexandre de Moraes. Seja
qual for ela, vale lembrar mais uma vez: a acusação elencou muitas provas,
não se fiando apenas nas palavras do tenente-coronel. Em tempo: o perfil
@gabrielar702 foi retirado do ar logo depois do interrogatório do ex-ajudante
de ordens.

*Com informação da VEJA

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